
Foto: Patricia Rodin
Na manhã do último dia 17 de março, um grupo começa a se reunir no terminal de embarque marítimo da bela praia de São Tomé de Paripe, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. O objetivo era participar do evento: “Toxic Tour” na Ilha de Maré, famosa ilha localizada na Baía de Todos-os-Santos, pertencente ao município de Salvador. A atividade integrava a programação do Fórum Social Mundial e teria a participação do professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Souza Santos, sociólogo, ativista mundialmente conhecido e um dos fundadores do FSM.
O grupo foi recepcionado por Eliete Paraguaçu, uma das organizadoras da atividade que é realizada pelo Movimento de Pescadoras e Pescadores (MPP) da região. Dois barcos saíram do terminal totalizando cerca de 100 pessoas de do Brasil e de outros países. O passeio tinha como interesse enfatizar o modo de vida dessas comunidades que vivem em uma área de suposta preservação ambiental, em um cenário de beleza, riqueza cultural, social, mas que têm sido sistematicamente devastadas pelos empreendimentos instalados no seu entorno.
Logo na saída, foi possível perceber que a vista deslumbrante contrastava com a quantidade de navios cargueiros e diversas instalações industriais de grande porte. Paraguaçu contou que o avanço dos grandes empreendimentos tem retirado das comunidades tradicionais o direito ao lazer, a subsistência e à vida. Durante todo o passeio, os pescadores e pescadoras mostravam evidências da poluição desenfreada do porto. Além disso, informaram que pesquisadores já detectaram poluição superior à de Cubatão, mas que foram intimidados ou cooptados pelo sistema e não levaram adiante as investigações. Denunciaram ainda, o fato de que as empresas que são contratadas para fazer essa investigações são ligadas às indústrias do porto, o que compromete a fidedignidade da pesquisas.
A pescadora quilombola Marizelia Lopes contou sobre uma explosão que ocorreu no navio Golden Miller, em 2013. “Perto do Natal, 17 de dezembro de 2013, às 17h40. Essa data não sai da minha cabeça […], quando vi aquela bola de fogo, nós passamos três dias e três noites inalando aquela fumaça”, relatou. De acordo com os pescadores, o caso foi emblemático do descaso que existe das autoridades com as comunidades. Houve imprecisão nas informações sobre a quantidade de combustível vazado no mar. Além disso, foram doadas a quantidade irrisória de mil cestas básicas à comunidade em uma tentativa vergonhosa de reparação.
Ao longo da viagem, todos puderam ver bem de perto navios expelindo fuligem, além de produtos não identificados que saiam das instalações e eram despejados incessantemente no mar. De acordo com os pescadores essa poluição tem matado os peixes e prejudicado a pesca. Durante a travessia, chamou a atenção também, a presença de luxuosas embarcações que passavam em alta velocidade, movendo as águas e desestabilizando o barco da “Toxic Tour”, como que em um movimento de intimidação. À medida que o barco avançava o ar também já parecia mais pesado.
O advogado Pedro Diamantino da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais contou que a construção do porto de Aratu precede a legislação ambiental, sua estrutura é obsoleta e não condiz com normas internacionais de operação portuária. Portanto, produtos de elevado risco são manipulados perto da população de Ilha de Maré de forma inadequada. Diamantino afirmou que o principal pleito da comunidade de Ilha de Maré são estudos de impacto ambiental que sejam feitos a partir de exames dos corpos humanos, tendo em vista que só assim seria possível detectar os problemas de saúde característicos dessas regiões com alto grau de poluentes.
No meio da expedição, ainda no barco, uma pausa para que todos se alimentassem com o tradicional mungunzá. A intenção era dar aos participantes também uma amostra dos costumes tradicionais de Ilha de Maré. Chegando à ilha de Bananeiras, que faz parte de Ilha de Maré, o grupo seguiu para o Centro Comunitário da região. Todos fizeram fila – ao longo da fila, era servida água de coco fresca –, para um delicioso almoço servido com muita fartura com todo tipo de pescado e alimentos tradicionais do local. Após a sobremesa – generosos pedaços de melancia –, o grupo se reuniu embaixo de uma mangueira para conversar sobre a situação da Ilha.
Estavam presentes os representantes das comunidades tradicionais de Ilha de Maré, ambientalistas, médicos, químicos, biólogos, juristas, pesquisadores de diversas áreas do Brasil e do mundo – alguns que já atuam na comunidade –, entre outros profissionais ligados às questões de direitos humanos. Todos em um esforço de pensar estratégias para essa população que já cansou de tentar chamar a atenção do Estado brasileiro para a sua situação. “É necessário que seja feito exame toxicológico nas pessoas, nós estamos aqui para socializar a nossa agonia. As autoridades responsáveis se negam a fazer os exames alegando falta de recurso”, enfatizou Marizélia Lopes.
Lopes lembrou que a saúde da população está se esvaindo em nome de um suposto desenvolvimento que não chega. A líder contou ainda que foi realizado um estudo no local pela UFBA que recolheu amostras de sangue e cabelo de 116 crianças. Nas amostras foram encontradas concentrações de Chumbo, Cádmio e Mercúrio. “Nós aqui sentimos o peso do racismo, a incidência de câncer tem sido elevada. Os órgãos governamentais nos chamam de ‘zona de sacrifício’, estão nos matando para dar lucro ao capital”.
O professor Miguel Accioly da Universidade Federal da Bahia (UFBA) afirmou que Ilha de Maré não está adequadamente identificada do ponto de vista geográfico e que por ser considerada como região pertencente a Salvador, suas peculiaridades e características rurais não são levadas em consideração. Devido a isso, não existem políticas públicas para Ilha de Maré. Ainda de acordo com o professor, a região tem os piores indicadores sociais de Salvador, é ignorada pelo município e segue sendo oprimida pelo capital.
Na ocasião, a Fiocruz fez a devolutiva de um trabalho de pesquisa realizado na região. A instituição trouxe exemplares do livro “Campo, Floresta e Águas – Práticas e Saberes em Saúde” uma iniciativa do Observatório de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – Obteia, como parte Núcleo de Estudos em Saúde Pública (Nesp/UnB). O livro conta com um capítulo escrito pela pesquisadora popular Eliete Paraguaçu em parceria com Thais Gomes, pesquisadora da UFBA, que trabalha com populações tradicionais. Gislei Knierim, Mestre em Saúde Publica e Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz – recentemente perseguido por denunciar os elevados índices de agrotóxicos no estado do Ceará –, também integram o projeto.

Eliete Paraguaçu e Boaventura de Souza Santos
Boaventura de Souza Santos, membro do Conselho Internacional em representação da Universidade Popular dos Movimentos Sociais e autor do livro Fórum Social Mundial: Manual de Uso, acompanhou as atividades no Centro Comunitário, foi abordado por algumas pessoas para autógrafos dos seus livros e para fotos. Enquanto os presentes falavam, o professor anotava tudo como um pesquisador atento. O sociólogo disse que era importante se focar nos compromissos. Afirmou que já conheceu situações difíceis com a de Cubatão e a de Bhopal, na Índia.
“A resistência que tenho visto aqui hoje é extraordinária. Tenho conhecido muitos desastres terríveis, mas estou impressionado com o desastre ambiental, porque é uma morte lenta mais difícil de identificar, mais difícil de testar e, portanto, mais difícil de controlar. Vocês estão sendo vitimas de uma morte lenta, de um genocídio, transformando essa comunidade em uma zona de sacrifício. Isso é moralmente repugnante, politicamente inaceitável em um país democrático. Democrático já nem sabemos se é, obviamente, depois de tudo que tem acontecido com esse governo ilegítimo. Desde Chico Mendes a Marielle e tantos outros que ficaram pelo caminho”, lamentou Santos.
Santos falou do livro da Fiocruz que, na sua concepção, é um importante marco e disse que é uma extraordinária contribuição na luta contra a ausência, invisibilidade e marginalização radical de povos. Lembrou que é necessário descolonizar as universidades e o conhecimento. Este livro é a expressão de descolonização e de democratização do conhecimento. É importante partir do conhecimento criado na comunidade. É o projeto mais acabado que eu conheci que teve a capacidade de juntar o conhecimento popular e o conhecimento acadêmico.
O Sociólogo lembrou da importância dos profissionais que são solidários e se dedicam às causas de comunidades ameaçadas. Citou especialmente juristas, biólogos e sociólogos e lamentou o fato de que esses profissionais têm sido perseguidos e ameaçados. Afirmou que qualquer cientista individualizado é uma vítima em potencial. “O capitalismo no Brasil está sendo selvagem, liquida pela via judicial ou pelo o assassinato. As mulheres indígenas e quilombolas já conhecem essa perseguição há muito tempo, agora estão perseguindo os cientistas que são solidários. Isso é uma tendência mundial”.
Ao saber que havia um integrante do Fórum Social Mundial da Noruega no grupo, Santos afirmou que era importante lembrar que a Noruega possui leis rígidas de preservação ambiental no seu país, mas tem um problema ambiental aqui, porque destrói a Amazônia no Brasil. Portanto, afirmou que os ativistas da Noruega têm de estar cientes do que está acontecendo aqui. O sociólogo também se comprometeu em divulgar a luta de Ilha de Maré. “Essa luta precisa ser internacionalizada, para que todos saibam o que acontece aqui na Ilha”, sinalizou.
É possível afirmar que a “Toxic Tour” em Ilha de Maré foi conduzida pelo o que Santos chama de uma Ecologia de Saberes. A acolhida, a alimentação e o diálogo, demonstraram que essa população gosta do seu modo de viver e quer continuar a poder tirar o seu sustento da terra. Já era noite quando o grupo atravessou à Baía de volta. Ficou evidente a força e a resistência dessa população. Por outro lado, o cheiro de produtos químicos, dessa vez mais forte, lembrou a batalha que eles ainda têm pela frente. Nesse momento, o grito de guerra dos povos tradicionais que foi entoado durante todo o evento, parece ser o mais adequado para finalizar esse relato:
“No rio e no mar, pescadores na luta! Nos açudes e barragens, pescando liberdade! Hidronegócio, resistir! Cerca nas águas, derrubar!”.
Daiane Silva – Jornalista Voluntária
Fotos: Patricia Rodin
Comunicação Compartilhada do FSM2018
Foto: Patricia Rodin
Tem que vim pra Águas lindas, aqui tbm não está diferente!